Thursday, June 22, 2006

Cachorro-do-Mato

Quem é que nunca viu um Cachorro-do-Mato andando por aí? Esse bicho é um dos meus favoritos, grande companheiro de andanças, que por vezes dá o ar da graça quando passeio pelo campo ou pela mata. Esse ano tive a alegria de ver uma família inteira, pai-mãe e filho - olha aí a trindade novamente - quando chegava na fazenda, em um desses fins-de-tarde maravilhosos que nosso Estado têm.
É um animal que sempre povoou meu inconsciente. Acho que foi o bicho que mais vi na minha infância, inclusive bem na frente da casa da fazenda, à noite. Acreditava, à época, que existia uma espécie de cachorro-do-mato com o rabo branco. Cheguei até a escrever a respeito, anos atrás. Uma das minhas primeiras e raras crônicas. Daquelas que não gosto muito sabe? Porque revelam muito o que sou.
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“A raposa saiu pulando em frente do carro. Saltos longos. Meu Deus! Quanto atrevimento! Está bem em frente da sede da fazenda. Por certo, procurando galinhas ou outros petiscos quaisquer. Como é bonita... Cinza, pelos crespos, com a ponta do rabo branco.”

- Dr. Leonardo, Dr. Leonardo!

O homem finalmente despertou do sonho. - Que foi?, resmungou, bravo, como se tivessem lhe tirado a tranqüilidade. Era algo qualquer, nada muito importante, como já antecipava. Logo agora! Estava tão longe! - Não quero ser incomodado!, falou. Ele remexeu a cadeira, ajeitou-se atrás da mesa e fingiu que iria trabalhar. Bobagem. Logo que a porta se fechou, a gaveta dos sonhos foi aberta.

A terceira gaveta da mesa do Dr. Leonardo é a gaveta dos sonhos. É terminantemente proibido, no escritório, que alguém mexa nela. Algo muito esquisito em se tratando do Dr. Leonardo. Dizem que ele é uma pessoa alegre, fácil de conviver, apesar de ser um pouco sistemático. Não parecia naquele dia. Sua secretária achou que ele estava apaixonado, - Só uma mulher para deixá-lo daquele jeito, foi o que ela disse - Que nada, era o cachorro do mato, o homem das leis e do estado gosta mesmo é de pensar nos seus bichos.

Qualquer um que visse o conteúdo da gaveta dos sonhos saberia, imediatamente, porque era absurdamente proibido mexer ali. Na realidade, nela não havia nada de importante. Só livros sobre animais selvagens. Mas estes revelavam um Dr. Leonardo que ele não fazia questão de mostrar para ninguém. Ali, na gaveta, o Doutor guardava seus sonhos, sua criança, aquela que se alimenta de idéias e desejos. Vocês bem sabem que criança solta só faz bagunça, não? Então, decidiu-se que aquela criança deveria ficar na clausura.

“Bem em frente à camionete, bem em frente! Sempre à noite. E... de fato, é diferente daquele outro, que a gente vê de tardezinha. Esse só sai a noite. Olha como corre! E com a ponta do rabo branco!”

Ele mexia apressado por entre os livros. Até retirar um. Era sobre mamíferos. Logo estava na secção de carnívoros. Cachorros. Olhou, leu e leu, como se nunca tivesse lido. Mas nada sobre um cachorro com a ponta do rabo branco que habitasse o cerrado brasileiro.

“De novo! Na estrada, em frente da camioneta. Como é bonito! Sempre na borda da mata ou no descampado. É animal típico do cerrado. Olha como ele tenta fugir do carro. - Devagar pai! - Pode assustar o lobinho!”

Dr. Leonardo bem sabia, apesar de ter procurado novamente naquele livro, que não havia nada que falasse, na literatura zoológica, sobre um lobinho de rabo branco que habitasse as matas brasileiras. Não obstante, sua ansiedade sempre o levava a procurar uma vez mais, na esperança de ter alguma notícia sobre o animal, como se ele pudesse ter esquecido de folhear alguma página, naqueles manuais todos.

A conclusão óbvia, acreditou ele, era por demais fantástica: a ciência desconhecia esse animal. Isso na aurora do século XXI!

“- O senhor vai sentar aonde? Aqui, pois bem... - Obrigado, respondeu o jovem rapaz, que, logo após se ajeitar na poltrona, pegou um volumoso manual de bichos. Sua leitura não demoraria nada, tendo sido abruptamente interrompida com a pergunta: - O sr. estuda biologia?, indagou o homem de barbas escuras e óculos, sentado ao seu lado no avião. - Não, faço pós em Direito, foi a resposta surpreendente. - É que também gosto de ecologia e ciências afins. Nas horas vagas, para distrair, tento ler a respeito. E o Sr.? - Sou Professor de Ecologia na USP. Os olhos do jovem brilharam. Tirei a sorte grande, foi o que ele pensou. Logo conversavam animadamente, a ponto de incomodar os vizinhos de viagem. - Sabe Doutor, quando era criança, via sempre na Fazenda uma raposa com a cauda branca. Porém, na literatura especializada, não há nada a respeito. Faz muito tempo que não vejo mais. Às vezes acho que tudo foi um sonho. Mas o bicho estava lá, juro, o vi mais de uma vez, sempre a noite, no descampado, pelos cinzas e crespos, menor que o Dusicyon thous ou que o Dusicyon velutus, e com a ponta do rabo branco...! - Não sei Leonardo, pode ser uma variação genética qualquer de um canídeo na região. Vou falar com um especialista a respeito e te mando um e-mail.”

Ele engoliu o café, não o saboreou. Hora de voltar à realidade, pensou. Havia um monte de papéis sobre sua mesa, todos eles clamando por um pouco de atenção. Sem muito entusiasmo, pegou um deles. Voltar à realidade... Sua cabeça ainda vagava um pouco. Voltar à realidade... Era o que mais lhe perturbava, voltar a realidade. Afinal de contas, tudo o que queria saber era se a raposa do rabo branco pertencia ao mundo, ou se era real apenas naquele sem número de recordações. Com a cara amarrada, sussurrou alguma coisa. Quem estivesse mais próximo ouviria um desanimado “que diferença faz?” Ora, Dr. Leonardo, faria toda diferença do mundo. Para a criança, a raposa é bem real. Para o Doutor, parece uma história de maluco... A criança e o Doutor não podem ficar discutindo assim... Para todos os efeitos práticos, então, o Dr. Leonardo fechou a terceira gaveta. Era melhor a criança ficar trancada lá mesmo.

1 Comments:

Blogger Luiz Roberto Lins Almeida said...

eu nunca vi um cachorro do mato!

6:32 AM  

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