Tuesday, September 12, 2006

Mosaico
Sempre amei mosaicos. Uma miríade de pedrinhas, das mais variadas cores, juntas, são capazes de formar um bela imagem. Foi a forma de arte mais elevada em Bizâncio.

A propósito dos mosaicos, peço gentileza para mencionar outro assunto. É o seguinte: Marco Aurélio, filósofo e imperador romano, abre seu livro “Meditações” com agradecimentos. “De Vero, meu avô, a boa moral e a calma. Da reputação e da memória de meu pai, a modéstia e a hombridade...” Com efeito, todo o primeiro capítulo de sua obra é um longo obrigado àqueles que, de alguma maneira, contribuíram para a formação de seu caráter. Algumas passagens são verdadeiros puxões-de-orelha: “De Alexandre, o Platônico: não falar a todo instante e sem necessidade, ou escrever, em cartas, que sou muito ocupado; nem desculpar-se sempre por negligenciar os deveres impostos por nossas relações com nossos conhecidos, alegando compromissos inadiáveis.”

Muito me impressionou esse capítulo. Ali, sem querer, Marco Aurélio ensina que muito do que somos devemos ao próximo. Aprendi, intuitivamente, que não sou uma ilha, e que coleciono partes dos outros em minha personalidade, em minhas ações. Trata-se, em verdade, de algo inevitável, natural. Agora, retornando ao tema, é como se a imagem do meu caráter fosse um mosaico, com várias quadradinhos, de várias cores. Umas pedras genuinamente leonardescas, outras da família, outras dos amigos, e algumas, ainda, de alguns autores que povoam minha biblioteca (e meu interior). Devo muito a esses últimos. Muito do que sou, devo a eles.

Por exemplo, Paulo Francis. Domingo e quartas, lá estava o Leonardo, lendo a coluna do Francis no Estadão. Li por tanto tempo que sabia quando ele estava melancólico, ou quando havia escrito sob a influência do éter (eram as melhores páginas). Domingos pela noite, assistia-o no Manhattan Connection. Quando morreu, a sensação que tive foi a de perder um amigo. Não teria mais a pessoa de sempre para “dialogar” a respeito de política, arte, cinema ou bobagens do cotidiano. Para suportar sua ausência, procurei comprar tudo o que ele publicou, inclusive os romances Cabeça de Negro e Filhas do Segundo Sexo (que, apesar da redação fabulosa, são chatíssimos).

O Francis muito influenciou meu pensamento político, minha forma de escrever, e, em muitos aspectos, a maneira que tenho de ver a vida e a sociedade. Achava-o a própria encarnação do super-homem de Nietzsche, na medida em que não se preocupava com a opinião dos outros, ao emitir a sua. Do Paulo, diria, herdei a tendência de ser franco, por vezes até estoicamente franco, de tratar os adultos como... adultos. É uma herança e tanto.

Outra presença poderosa é a do Roberto Campos. Bob Fields foi a pessoa que me fez querer ter uma cultura enciclopédica, uma sabedoria inútil. Acho que ele é o responsável pelo feitiço que me fez acreditar que ser culto é ser elegante. Seu português escorreito e direto, seu humor finíssimo (que queria poder imitar), e sua ilustração vasta muito me encantam. Campos é um amigo que partilha comigo a paixão de colecionar “estórias”, em saber o inútil, aquilo que não servirá absolutamente para nada, a não ser, talvez, para jogar conversa fora.

No Direito, minha maior influência, de longe, foi o Alfredo Becker. Coisa perigosa! Seu pequeno livro “Carnaval Tributário” me foi uma como uma revolução. É talvez graças ao Becker que nunca acreditei que Direito tem alguma coisa a ver com Justiça. Pior: Por obra dele que sempre estive atendo às vaidades da minha profissão. Uma ou duas outras lições também devo a este autor. A primeira é a de que antes do profissional tem que vir o homem, senão nada fará sentido. Outra é a de que atrás da capa amarela e feia do processo, ou do código legal, cuida-se de vidas de carne e osso.

Claro que também me entorpeci de filósofos. Mas não vejo muitos filósofos vivos em mim, salvo, talvez, o estóico Sêneca. O estoicismo me perturbou demais na adolescência. Foi difícil superar a tirania da razão sobre a emoção. Eventualmente, consegui. Também gosto do Fichte, do Nietzsche e, claro, do místico Spinoza. Maior, devo admitir, foi o impacto dos historiadores. Há muitos deles festejando em minha alma. Destaque-se o Will Durant, que, com a escrita, faz a história parecer arte. Outro é o Maurice Crouzet, lamentavelmente, também, francês. Deles percebi que escrever e ensinar é, antes de tudo, seduzir. Grande sedutores são esses dois!

Para não cometer uma injustiça, quero mencionar uma bizarrice. Sim, outra excentricidade. É que o bizantinista Warren Treadgold está gritando, dentro de mim, para ser mencionado. Tudo bem, concordo. Mas do Warren não tenho nada. Quando li o seu adorável livro, O Renascimento Bizantino (que amei de paixão), já gostava, e muito, do império romano do oriente. Assim, o menciono apenas para tranqüilizar a minha consciência, e atender ao pedido de um amigo.

Grande impacto, mesmo, recebo de autores ligados à Teologia (ou esoterismo, ou misticismo, depende da fé do leitor). Não conhecia gente boa neste campo, salvo, talvez, o Nilton Bonder e o Joseph Campbell (li alguns do Deepak Chopra mas não me envolvi). Isso até colidir com o Emmet Fox. A “raposa” me era um ilustre desconhecido até que, quatro anos atrás, comprei um livro seu (O Sermão na Montanha). Hoje tenho quatro, quase todos trelidos. Sua leitura é repetitiva, piegas, meio auto-ajuda, mas, de fato, é quem melhor me ensinou a interpretar a Escritura Sagrada! A este autor tenho, antes de tudo, gratidão. Afinal, ele é um dos que me ensinou a sentir e entender a Bíblia... precisa dizer mais?

Mas penso que meu maior companheiro nos livros, grande influência de vida e conselheiro fiel seja outro Teólogo. Um que escreve sobre educação e coisas da vida, que gosta de ensinar, que ama a Natureza. O Rubens Alves.

O Rubens é - pelo menos esse dos livros – alguém muito parecido comigo (melhor dizer, eu com ele). Digo, há coisas que leio dele e falo, “Deus, isso sou eu”. Não é loucura. Um amigo meu do mundo dos reais, o André, um dia me disse que viu uma crônica do Rubens sobre os ipês e que achou que eu que tinha escrito! De sorte que é falsidade falar que o Rubão me influenciou, deu sua contribuição para o mosaico de minha personalidade. Parece mais um caso de muita semelhança, só. Ou talvez a influência tenha sido tão profunda que não saiba mais onde termino e onde ele começa. Tanto faz. Querem ver como vejo a vida, leiam Rubens Alves.

Ou talvez, se quiserem, peguem um atalho com o Kenneth Clark. Ele também é parecido comigo. Vejam só o que ele disse, ao terminar o seu livro “Civilização”: “A esta altura” escreve, em tom de suspense, “vou revelar-me como realmente sou: um quadrado”. De fato!

Eu adoro ser um quadrado. Desse que podem ser usados para fazer mosaicos.

3 Comments:

Blogger Luiz Roberto Lins Almeida said...

Leonardo,
realmente esse texto está excelente. A figura do mosaico também me persegue, nunca consigo saber quando uma idéia é minha ou quando eu a li, ou ainda se fundi o pensamento de dois ou mais escritores.
se ensinar é seduzir, vc é um sedutor. o grandee talvez único mestre que fez compensar os cinco anos de idas à Universidade.
Abração do seu eterno discípulo

3:40 PM  
Blogger Luiz Eduardo Silva Parreira said...

Clap, clap, clap!!! Que texto!

É, meu amigo, tratar adultos como adultos não é mole.

Se "muito do que somos devemos ao próximo", esses podem nos tornar fortes ou sábios, porém, também, tristes e arrependidos.

Becker deveria ser leitura obrigatória para todos os advogados, pois a "vaidade da profissão" torna anjos, demônios, Hopkins em Goerings, Pedros em Judas.

I Coríntios 13,1-13: eis ai, talvez, a saída ... talvez.

8:15 PM  
Blogger Cida Carvalho said...

Caro Leo,

Sou mosaicista e estou com uma exposição minha e de meus alunos .O tema "Mosaico Categoria Arte" . Estava a procura de uma definição simples de mosaico e achei seu blog.
Maravilha cara!! Estou homenagenado um aluno e fiz um texto . Defini um pequeno (como voce diz) "quadrado" e minutos depois encontro o seu texto . Exato .. Voce sintetiza aqui tudo o que levei algum tempo para definir ...Beleza"!!!
E viva a arte musiva ... espiritual e material!!!!!

Abraços Brasilienses!!

Officina do Mosaico Cida Carvalho

8:40 PM  

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